exhibition

sobre
a exposição “solitude expressa”, no teatro glaucio gill, rio de janeiro, em julho de 2023 destaca o trabalho do artista ao longo de um curso de 2 anos. com a exibição de 15 telas inéditas que abordam temas sensíveis à obra do artista, como solitude, uso da tecnologia, natureza, infância, memória e escapismo, a exposição ofereceu uma visão abrangente da evolução artística e das preocupações do artista.
about
the exhibition “solitude expressed”, at teatro glaucio gill, rio de janeiro, in july 2023 highlights the artist’s work over a 2-year course. with 15 new canvases on display that address sensitive themes in the artist’s work, such as loneliness, use of technology, nature, childhood, memory and escapism, the exhibition offered a comprehensive view of the artist’s artistic evolution and concerns.
texto curatorial | curatorial text
solitude expressa, de raffaeli
rio de janeiro, 07 de julho de 2023
por fellipe fernandes f. cardoso*
na centelha das conversas de boteco, durante uma noite fresca do rio de janeiro, em junho deste ano, um empresário e marchand russo, me perguntou: “você acredita que as referências, para as artes plásticas, são ou não essenciais para uma ampla compreensão do que a obra representa, seja contextualmente em significado, em técnica, em posicionamento cronológico, em estéticas e escolas, e afins?” pressenti que era, mais do que uma dúvida, uma pergunta retórica, uma espécie de amplificação do debate sobre o quanto uma obra se sustentaria em sua existência sem as heranças culturais do artista que a criou. por isso talvez, antes de ouvir minha resposta, ele emendou: “o que um artista cria fala mais sobre o reflexo de suas influências ou de sua autenticidade enquanto leitor de mundo?”
sendo eu escritor e entendendo que o ato de escrever pode sim até se beneficiar de referências literárias ou artísticas que ajudariam a moldar um possível estilo narrativo, sei que o desejo que impulsiona o leitor a abrir um livro prescinde de qualquer conhecimento prévio sobre a literatura para situá-lo no espaço-tempo da obra desbravada. percebo que há, nas artes visuais – quiçá pela delimitação da projeção imaginativa de um cenário já proposto e sobre o qual o diálogo se estenderia -, algo que propulsiona o observador e que, mais do que recriar a obra a partir de sua leitura, pode elevá-la a um contexto mais amplo, desde que se consiga, a partir de suas elaborações, situá-la no campo das associações que ajudariam a tornar a análise semanticamente mais rica.
a conversa despretensiosa daquela noite, nas vésperas da abertura de “solitude expressa”, primeira exposição individual do artista raffaeli, me deixou reflexivo acerca não apenas daquilo que vejo quando estou diante de suas obras, mas do porquê o vejo. deixei-me pensando se os caminhos para meu gosto individual seriam benéficos para que outros e outras, ao adentrarem o foyer do teatro glaucio gill, lugar onde a exposição estará até o fim de julho, pudessem estabelecer conexão que resgatasse tanto aquilo que imediatamente as agradaria e que, com coragem e desconfiança, desbravassem aquilo que, porventura, desaprovassem. quais seriam as referências que, diante do resultado curatorial da mostra, compartilharia para que, fazendo justiça ao artista e sua produção, o observador pudesse partir, recuperando o que giulio argan escreveu sobre giorgio morandi, “do conceito de espaço ou da concepção unitária do real, para daí deduzir o conhecimento das coisas particulares”?
sobra dizer que a obra de raffaeli, desavergonhadamente honesta sobre o encantamento que a corrente provoca no próprio artista, sacia sua sede com jorros caudalosos do expressionismo, turma de vanguarda concentrada especialmente na alemanha entre 1905 e 1930, cuja criação prezava pela arte do instinto, um elogio ao drama, muito subjetiva e com cores sem formas delimitadas. para os expressionistas, o psíquico seria mais importante do que formas e regras de composição, ainda que seja necessária muita técnica para entregá-lo à arte com a qualidade artística e com valor cultural esperados. dos expoentes do movimento, posso citar edvard munch, kirchner e, meus favoritos, oskar kokoschka, henri matisse e amedeo modigliani.
no conjunto de obras que “solitude expressa” reúne, raffaeli traça um fio de subjetividade em presenças silenciosas, cujo espaço que habitam é figurativamente um conceito que acaba desaparecendo nos próprios objetos e camadas secundárias que o circundam e compõem o seu todo. é no desaparecimento do conceito “espaço” que fica claro, para o observador diante da tela, que ele existiu e continua existindo, não mais como conceito, mas sim como realidade vivida.
fixem-se diante de quadros. aquele em que a energia de um menino é absorvida pelo celular; outro em que se vê o recato de uma senhora ao lado de uma nada recatada garrafa de vinho; a dúvida sobre um cachorro inerte cravado pelo peso da cruz. todas as obras, de alguma forma, pausam a cena, recortam a vida e roubam a placidez de um tempo que passou a ser, nas linhas de luz terrosa e, de certa forma, crua no pincel do artista, infinito. tudo isso, obviamente, como resultado de uma leitura que, condensada pelas referências que o observador venha a ter, marcam a relevância da obra do artista num momento da história em que, imageticamente falando, o olho de boa parte de nós está já acostumado a apenas captar o que há para ser visto, não sobrando tesão para expandir e atravessar a narrativa que exige de nós o subtexto e, logo, nossa presença ativa.
parafraseando fernando pessoa, para quem a parte que nele pensava também era a parte que sentia, a arte pode até ser bela, mas sem as reflexões que ela provoca, recolher-se-ia a uma ordinariedade situacional que nada contribuiria para a formação da alma cultural coletiva de um lugar ou de seu povo. como inquiria orson welles no filme f for fake (1973): ainda que seja bonito, será arte? no reino do rio de janeiro, cidade purgatório da beleza e do caos, a solidão e o silêncio de “solitude expressa” abrem uma fissura que convida, independente de qual o contexto histórico ou de conhecimento prévio, o observador a se olhar num espelho por onde também se percebe no delicioso e angustiante exercício de se identificar no objeto que analisa.
é delicioso, porque o olhar é figurado; é angustiante, porque o refletir é transfigurado. a vida, não aquela que se mede em compromissos, ponteiros de relógio e vil metal, mas sim a que se encontra quando estamos, seja enquanto observadores de obras de arte ou de leitores da literatura universal, dispostos a entender como uma ficção da qual fazemos parte, abre-se, portanto, para momentos que nós escritores chamamos de romanescos, ou seja, que abundam em aventuras próprias de romance, fabulosos, maravilhosos, fictícios. é ela que melhor do que qualquer texto dá sentido à releitura expressionista de raffaeli. também é ela que a deforma de qualquer julgamento prévio de outras referências que eventualmente se unam à leitura para torná-la talvez mais acadêmica e, por isso, respeitada.
se o ator é rascunho e o escritor é cinzel, o artista visual é uma espécie de mística que, por meio do óleo sobre tela, ao derramar de si aquilo que só ele mesmo conhece, nos compartilha, do psíquico, a oportunidade de voltarmos a nos reconhecer enquanto indivíduos através do olhar do outro. com essa retomada da subjetividade do jogo de luz e sombra, de espaço e tempo, o observador que se deixar entender diante das obras de raffaeli em sua exposição também circunscreverá em diferentes metaversos (para usar, por sim, uma palavra mais jovial) o que todos poderíamos haver sido ou ainda poderemos ser se assumíssemos que, na antropologia deste nosso país, somos todos um bocado de vida interiorana, com nossa conexão com a poeira, o cheiro sensual do mato, a calma enervante do povo, o tom acalorado dos hibiscos, o cricrilar ontológico dos insetos.
a “solitude expressa”, de raffaeli, nos mostra que, quando pensamos sobre referências à luz da discussão que deu início a este texto, bastará ser brasileiro e vivo para entender como se pode expressar a solidão de uma forma que não doa, de uma maneira que, para além da literatura possível no que conhecemos por artes plásticas, também cintile no observador que a devota por arte, exatamente como os tons de amarelo que acendem a pele de um corpo nu diante de um céu ardósia no fim de tarde, outra obra da exposição. saber sobre expressionismo, portanto, pode até abrir sim um espaço para que haja conexões e elaborações, mas o que raffaeli mesmo quer é nos provar que o não saber jamais haverá de limitar a quem quer que seja que viva e que, pela arte, queira enxergar.
fellipe fernandes f. cardoso é jornalista e escritor. autor de sem mim não há dia, romance publicado pela editora urutau.








